FONTE: BRASIL DE FATO
Depois de aprovar emenda
constitucional que congela os investimentos da União por 20 anos (EC 95/2016) e
de pautar, em regime de urgência, a reforma da atual lei dos planos de saúde –
que libera planos de cobertura reduzida e livra os empresários de reembolsar o
serviço público pelo atendimento prestado a quem tem plano privado – o governo
de Michel Temer pode desferir mais um golpe contra os cofres do SUS.
Reunidos esta semana em
Brasília, no âmbito do 29º Comitê Negociador Birregional (CNB), representantes
do governo brasileiro, de países do Mercosul e da União Europeia discutem,
entre outras questões, capítulos do acordo de livre comércio entre os dois
blocos regionais. Entre eles, aquele referente a propriedade intelectual.
Segundo o Ministério das
Relações Exteriores, o Brasil, que preside o bloco e que atua de forma
coordenada com seus demais sócios do Mercosul, tem interesses estratégicos na
área de propriedade intelectual, em que se destacam as medidas relacionadas à
saúde pública e transferência de tecnologia. E que o Mercosul entende que a
principal referência nesta área deve continuar a ser o Acordo TRIPS, da
Organização Mundial do Comércio (OMC) e os Acordos da OMPI, subscritos pelas
partes.
Os dois blocos estão
reunidos em Brasília desde o começo da semana para uma nova rodada de
negociações do tratado.
Ou seja, as cartas
continuarão sendo dadas em um jogo cujas regras não têm beneficiado
trabalhadores nem a população mais pobre. Foi por meio desses acordos,
assinados durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que o Brasil
reconheceu patentes até mesmo de medicamentos cujas formulações, antigas, já
estavam sob domínio público.
E esses acordos, em grande
parte os responsáveis pelo alto custo dos medicamentos e pelo impacto aos
cofres do sistema público de saúde, deverão impor ao país gastos adicionais de
pelo menos R$ 1,9 bilhões por ano.
O estudo da Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio Arouca, vinculada à Fundação Oswaldo Cruz
(ENSP/Fiocruz), divulgado no último dia 28 de setembro, projeta números bem abaixo
da realidade. Isso porque os pesquisadores botaram na conta apenas o que o
governo desembolsa com a compra de medicamentos para tratar a hepatite C – uma
média de R$ 1,8 bilhão – e de R$ 142 milhões contra antirretrovirais (ARV)
usados no tratamento de HIV/Aids.
Para chegar a essas
conclusões, os pesquisadores analisaram as compras de 22 ARVs pelo SUS em 2015
e dos três medicamentos contra hepatite C comprados em 2016. Os valores
equivalem aos custos anuais do tratamento de 60 mil pessoas com hepatite, com o
uso de medicamentos de última geração, e mais de 57 mil pacientes com HIV.
A projeção se limita aos 25
medicamentos usados para tratar essas doenças. "O Ministério da Saúde
compra muitos outros para tratar diversas doenças. Por isso o impacto das
propostas dos europeus pode representar custos anuais muito maiores que esses
quase R$ 2 bilhões que calculamos", disse a pesquisadora do Departamento de Política de
Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Ensp/Fiocruz, Gabriela Chaves.
Protecionismo
De acordo com os
pesquisadores, a União Europeia quer aumentar o protecionismo com a adoção de
medidas capazes de proporcionar maior exclusividade de mercado para as suas
multinacionais com grande atuação no mercado de medicamentos. São medidas com
impacto maior que de acordos anteriores, que encontram maior abertura em
governos neoliberais.
Gabriela Chaves lembra que o
SUS já paga uma conta alta pelo fato de o Brasil ter assinado os acordos em
1996, quando por decisão do governo de FHC, deixou de desenvolver sua indústria
de genéricos quando tinha um prazo de 9 anos, previsto no acordo com a OMC,
para implementá-la.
“O que está em jogo nos
resultados dessas negociações é a sustentabilidade do sistema público de saúde,
já que medidas que fortalecem o monopólio de tecnologias essenciais em saúde
possibilitam que as empresas pratiquem preços muito altos, ameaçando o
princípio da universalidade do SUS”, explica.
Desde o final da década de
1990, o país passou a gastar mais com os antirretrovirais patenteados antes da
hora por FHC. Quando as patentes de medicamentos entraram em vigor, em 1997, o
governo brasileiro teve que adotar diferentes estratégias para a redução dos
preços de medicamentos sob monopólio,
como produzir genéricos.
A pesquisadora lembra que em
2007, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva licenciou compulsoriamente –
quebra de patente – do medicamento Efavirenz, usando no tratamento da Aids.
Assim foi possível passar a produzir no país a versão genérica, que custa até
77% mais baratas. Mas ainda não houve quebra de patente de nenhum medicamento
para hepatite C.
Soberania
Desde o episódio Efavirenz,
o Conselho Nacional de Saúde (CNS) tem se posicionado em defesa do interesse
público, do desenvolvimento da saúde e da soberania e contra acordos
internacionais costurados para defender interesses de transnacionais, conforme
conta o presidente do colegiado, o farmacêutico Ronald Ferreira dos Santos.
"Há muito tempo o CNS
vem se posicionando no sentido de criar mecanismos que dê mais autonomia e
capacidade de decisão em torno dos interesses da saúde pública do que do
interesse do mercado internacional, como geralmente acontece quando esses
acordos são costurados", diz. "Desde que nasceu, esse acordo Trips é,
na verdade, um grande aceno das corporações bilaterais dos Estados Unidos, da
Europa e do Japão, que dominam esses mercados nesses três continentes, e que
acabam definindo o regramento única e exclusivamente para atender os seus
próprios interesses."
Ronald destaca que o
Sofosbuvir – fármaco usado para hepatite C, incluído nos estudos da
Ensp/Fiocruz – foi alvo de manifestações do CNS. Em março passado, o colegiado
editou a Recomendação 007, na qual sugere que a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária se posicione de maneira
contrária ao reconhecimento de patente pelo Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI). Para os conselheiros, o medicamento está em meio a um
processo de internacionalização da tecnologia, para parceria de produção com
laboratórios de genéricos indianos de genéricos.
Na avaliação do presidente
do CNS, a soberania brasileira está sendo atacada hoje em dia de maneira muito
mais virulenta do que foi na década de 1990 – "centenas de vezes mais
virulento". "Há muito
interesse dessa turma ultraliberal, que observa ou vai definir suas planilhas
com taxa de investimento e taxa de retorno".
"Nós também somos
contra aquilo que nós consideramos um golpe do atual governo, de retirar a
premissa da Anvisa de anuência prévia para registro de patente. Nossa discussão
quanto à propriedade industrial tem sido sempre no sentido de defender que os
interesses das necessidades de saúde e a própria soberania nacional prevaleçam
sobre qualquer tratado internacional".
Ronald considera que a
situação do país não é nada confortável sob o comando de um "governo
entreguista", que já colocou a perder avanços obtidos nos governos de Luiz
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. É o caso do complexo industrial da
saúde, uma parceria com o setor produtivo, que já sofrem revezes. "Veja o
que aconteceu com a indústria naval, o que está acontecendo com a indústria do
petróleo. É um jogo muito pesado, e isso levando-se em conta que temos a
gigante Petrobras. Imagine então esse jogo no segmento farmacêutico, onde ainda
estamos no século 19. A luta acaba sendo desproporcional."
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2017/10/05/acordo-comercial-com-uniao-europeia-pode-onerar-sus-em-mais-de-rdollar-2-bilhoes-anuais/?platform=hootsuite