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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Assembleia Mundial da Saúde aprovou resolução que propõe mais transparência no mercado de medicamentos


EXTRAÍDO DO SITE: OUTRASPALAVRAS.NET/OUTRASAUDE

Decisão inédita dos países que compõem a OMS propõe transparência no mercado de medicamentos. Vitor Ido, do South Centre, comenta a geopolítica por trás do problema de acesso a esses tratamentos.

Na terça (28), a Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma resolução inédita que propõe mais transparência no mercado de medicamentos, vacinas e produtos de saúde. O sinal verde foi dado depois de uma longa batalha diplomática que se iniciou em fevereiro, de forma inesperada, quando o governo de extrema-direita do primeiro ministro italiano Matteo Salvini apresentou a proposta. Ao lado da Itália, constavam como apoiadores da resolução dois outros países europeus – Portugal e Espanha – e isso, na opinião de muitos analistas, fez a diferença. Durante muito tempo, as dificuldades no acesso a medicamentos foram tratadas como assunto de países pobres. Um problema do Sul global. Mas as políticas de austeridade, por um lado, e os custos cada vez mais proibitivos cobrados pela indústria farmacêutica, de outro, transformaram a questão em um problema de todos. Ou quase todos.
A resolução enfrentou grande resistência dos países que sediam as principais multinacionais da Big Pharma. Nações como Alemanha, França, Reino Unido e Suíça fizeram de tudo para mudar o sentido original do texto. À certa altura das negociações, o documento apresentava mais de 200 mudanças e circulou nas redes a denúncia de que esses países estariam tentando “matar” a resolução com “200 colchetes” – que é a forma como as propostas de edição apareciam nos rascunhos.
Uma das alterações, feita pelo Reino Unido, tirava a menção a “preços altos”. Já a desculpa da Alemanha para tentar adiar a discussão por mais um ano foi a forma como o documento foi apresentado, fora do trâmite normal da Organização Mundial da Saúde. No fim, mesmo depois de ter atuado durante toda a negociação, os governos britânico e alemão (e também a Hungria de Viktor Orbán) simplesmente se recusaram a assinar a resolução, se “dissociando” do texto final, um movimento bastante raro na diplomacia. Os Estados Unidos surpreendeu e não fez oposição. Já países que inicialmente não foram protagonistas no processo, ao longo dele se associaram à Itália e defenderam o texto – caso do Brasil.
Depois de tantas idas e vindas, o conteúdo da resolução ficou menos ambicioso. A versão consensual “perdeu os dentes”, como muitos falam. Uma dentada que não poderá ser dada, ao menos por hora, é a determinação de que a transparência de custos em toda a cadeia produtiva seja requisito prévio para que uma empresa obtenha o registro de um medicamento. Mas o texto aborda a necessidade de que os países troquem entre si os preços que pagam, assim como as informações sobre as patentes que concedem.  
Nessa entrevista concedida no calor dos acontecimentos, diretamente de Genebra, Vitor Ido, oficial do programa de desenvolvimento, inovação e propriedade intelectual do South Centre, vai além da resolução para explicar seu pano de fundo e a geopolítica por trás do problema.  
Qual é a importância da resolução?
A resolução é um marco na luta por acesso a medicamentos por reconhecer que é necessário transparência para diminuir os custos de medicamentos e produtos de saúde. Alguns dos pontos centrais são o reconhecimento de que esse é um desafio que envolve toda a cadeia de produção, não apenas o produtor final, o reconhecimento formal de que muitos desses produtos de saúde não são acessíveis e a abordagem de uma série de medidas públicas possíveis para contornar o problema.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que depois de todas as mudanças, o texto não contém muito conteúdo obrigatório. Ele cria uma série de atividades a serem realizadas pelos Estados e pelo Secretariado da OMS. Mas a resolução depende fundamentalmente da implementação nacional, que pode acontecer de várias maneiras, e é importante que a sociedade civil e institutos de pesquisa desenvolvam instrumentos de acompanhamento para verificar se elas serão efetivamente colocadas em prática. Isso porque certas interpretações limitadas do texto podem acabar impedindo sua efetividade.
Mas esse é um processo que a gente precisa fazer daqui para frente. Por enquanto, é uma vitória dos países em desenvolvimento. Apesar de ter sido capitaneada pela Itália, a resolução contou com a participação de vários países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. E uma vitória da sociedade civil por reconhecer que o acesso a medicamentos é cada vez mais um problema que atinge a todos.
Outro ponto central para o debate é o que a resolução não contempla. Ou seja, a criação de um mandato específico para a OMS para difundir a proposta de transparência entre os países e criar incentivos para que esses países implementem políticas obrigatórios em relação à indústria farmacêutica. Para avançar, o que se espera é a aprovação de outras resoluções ou medidas que possam cada vez mais exigir a transparência nos mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos médicos.
O que é exatamente a transparência da qual fala a resolução?
A ideia de transparência só faz sentido na medida em que traga maior controle social para a sociedade, os pacientes, outras empresas e governos sobre como os custos da pesquisa & desenvolvimento dos medicamentos se formam hoje no mundo.
O contexto atual é basicamente de ausência de informação para saber, por exemplo, as bases em que os governos devem negociar preços quando fazem compras públicas. Ou para avaliar a veracidade – ou não – dos argumentos de grandes indústrias farmacêuticas que dizem que têm muitos gastos com pesquisa & desenvolvimento. A resolução tem o mérito de trazer à tona esse debate que fica implícito, mas que é crucial em qualquer discussão sobre o acesso a medicamentos hoje.
É importante dizer não é uma questão inédita, não uma questão nova de maneira alguma. Mas tem se tornado cada vez mais importante na medida em que os países desenvolvidos não dão conta e não conseguem pagar medicamentos que são cada vez mais especializados e caros.


“O problema é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais transacionais e poderosas”
Os custos da indústria farmacêutica sempre foram uma caixa preta ou isso piorou ao longo do tempo?
Pode-se dizer sem grandes polêmicas que transparência nunca houve. Talvez o debate tenha sido colocado nesses termos recentemente, mas a ideia de que não se sabe exatamente quanto, por que e por quais meios a pesquisa & desenvolvimento se realizam está presente há muito tempo.
Sobre a possibilidade de ter se tornado um problema mais complexo ou não, eu acho que seria preciso também uma análise de como funcionam as principais tendências da inovação hoje. Há muitas pesquisas sérias conduzidas por organizações não governamentais e governos que constatam que a indústria farmacêutica tem inovado menos. Evidentemente a indústria e seus próprios estudos costumam dizer que isso se deve ao fato de que os medicamentos são cada vez mais caros de serem criados, já que se atua em certos nichos de doenças cada vez mais específicas, complicadas ou resistentes.
Mas eu diria que, sim, o problema é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais transacionais e poderosas.  E porque o modelo de inovação atual se baseia muito na compra de inovações de indústrias menores. Por exemplo, uma pequena indústria farmacêutica efetivamente realiza a inovação, mas não tem dinheiro para fazer os testes clínicos até a fase final. O que acontece? Uma grande farmacêutica compra essa inovação. Isso agrega um grau de complexidade maior porque estamos falando de orçamentos que incluem mais de um ator e às vezes estão ocorrendo em mais de um país e em mais uma cadeia de produção.
É aí que entra a previsão de compartilhamento de preços e outras informações entre os países?
Sim. Isso criaria condições melhores tanto para negociação quanto para entender quais são os gargalos em todos os pontos da cadeia de produção, tanto na pesquisa & desenvolvimento. E ainda para descobrir quanto desse investimento vem de verbas públicas e para entender, por fim, a que preços esses medicamentos são vendidos e se efetivamente países em condições similares estão pagando o mesmo preço, ou estão em condições diferentes.
Existem vários casos e exemplos de países pobres e de renda média que pagam mais caro por medicamentos que os países do Norte. Esse debate era muito importante para os países do Sul, que já vêm falando nisso há algum tempo, mas agora surge essa novidade que é a atuação da Itália, junto com Portugal e Espanha…
Em alguma medida, é claro que essa resolução ganha um senso de legitimidade pela forma como as coisas existem no mundo, que ainda é dividido entre Norte e Sul. O fato de ser uma resolução da Itália, apoiada por Portugal e Espanha, não deixa de nos fazer lembrar que aquilo antes tratado como um problema exclusivo dos países do Sul agora se tornou um problema global que atinge a todos os países.
É uma contradição e um grande fator de iniquidade global o fato de que muitos países, inclusive os mais pobres do mundo, acabem pagando preços mais elevados do que países industrializados na Europa.
Por muito tempo, o movimento por acesso a medicamentos identificou nas patentes o problema central. Eu diria que as patentes continuam a ser um problema central, mas se começa identificar uma série de problemas laterais e alguns adicionais a esse problema central. Eles se delineiam na estrutura de interesse privado das indústrias farmacêuticas em contraposição com o interesse público do acesso a medicamentos.
Uma das razões pelas quais países na África subsaariana acabam pagando um valor muito elevado diz respeito ao fato de que eles são incluídos em grandes programas globais de licenças voluntárias.
Esses programas foram criados como uma alternativa a países que não conseguem ter produção local, mas também são uma reação à emissão de licenças compulsórias – aquilo que as pessoas chamam de ‘quebra de patente’ – por parte de países de renda média como Brasil, Tailândia, Equador… Ou seja, dá para olhar pelos dois lados. Esses grandes programas da indústria farmacêutica podem ser vistos como uma tentativa de evitar o que para ela é pior, que é a licença compulsória. Por outro lado, criaram espaços onde antes não existia.
Só que o problema central disso tudo é que, no final das contas, um governo de um pequeno país da África subsaariana nunca vai ter a mesma capacidade de negociação que o governo do Brasil e muito menos do que o governo dos Estados Unidos.


“Não importa por qual ângulo se entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em detrimento da população do Sul global.”
Não tem capacidade técnica, não tem escala… E nem geopolítica.
Exatamente. Não tem um poder de pressionar, não tem eventualmente quantidade de pessoas.  É importante destacar que não se trata necessariamente de talento, boa vontade ou lisura. Mas de uma desproporcionalidade de recursos e informação. A informação é central para saber o preço que deveria ser efetivamente cobrado por um medicamento.
E é óbvio que daí a gente vê toda essa complicação do que seria um preço acessível ou como eles começaram a dizer agora um preço razoável, ou fair pricing. Mas esses países não sabem nem o que os países vizinhos estão pagando. Muitas vezes porque esses acordos exigem cláusulas de confidencialidade. Ou seja, as empresas cobram um preço favorável, desde que o país não compartilhe com seus vizinhos o quanto está pagando. E essa confidencialidade é prevista no contrato. Esse é um caso que tem sido reportado com uma certa recorrência.
Ou de maneira mais geral, qual é o critério que se baseia um determinado preço. Um bom exemplo é o do medicamento de hepatite C, sofosbuvir, que ganhou proeminência nos últimos anos pelo custo extremamente elevado. Para se ter ideia, no sistema de saúde de um país rico como a Suíça, o  sofosbuvir só estava sendo oferecido para os pacientes em uma condição já grave da doença, justamente por custar muito caro. A empresa farmacêutica, Gilead, dizia que estava baseando o preço na própria vida. Porque ou você vai tomar esse medicamento ou vai fazer um transplante de fígado ou vai morrer. Esse é o argumento para dizer que, afinal de contas, o medicamento não é tão caro.
Que tipo de contra-argumentos se pode apresentar, que tipo de dados se tem disponíveis, que tipo de poder tem um país, principalmente aquele sem produção local ou com uma produção voltada para outras coisas, e em um contexto de uma crise grave de saúde pública e ao mesmo tempo orçamentos que estão cada vez mais comprimidos?
Não importa por qual ângulo se entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em detrimento da população do Sul global.
Por que a construção de sistemas públicos de saúde, ou sistemas nacionais de saúde, teve ênfase na prestação de serviços e deixou de lado esse componente tão importante de produção de medicamentos, equipamentos e insumos, que poderia dar aos países mais autonomia diante da Big Pharma?
Por um lado, os países sofrem uma pressão pela via do comércio internacional para abandonarem políticas que são consideradas intervencionistas, mas que na verdade são legítimas à luz do direito internacional. A gente tem visto crescer a pressão, não só unilateral ou por vias não diplomáticas, mas pelas vias mais institucionais possíveis para que os países abandonem qualquer tentativa de industrialização, o que inclui evidentemente produção de medicamentos.
Pelas regras do comércio internacional, a participação de empresas estatais é perfeitamente reconhecida como possibilidade, em especial para os países de menor desenvolvimento relativo. Mas o que a gente tem visto é uma tentativa de criar argumentos que são ao mesmo tempo jurídicos, políticos e econômicos para dizer que os países não só não devem como não podem fazer isso porque supostamente estariam beneficiando empresas locais em detrimento do livre comércio. E ao mesmo tempo a competição internacional nunca permite que indústrias cresçam se elas forem submetidas imediatamente à concorrência de outra empresa que tem literalmente mais de mil vezes o seu tamanho. Nesse sentido, esse espaço de manobra da política diminuiu drasticamente para todos os países desenvolvimento. E cada vez mais acordos de livre comércio como novo Nafta [USMCA] vão contraindo ainda mais essa possibilidade.
E é lógico que tem um pouco da mentalidade, de como os governantes e políticos dos países aceitam essa narrativa de que a única e inevitável salvação é abrir os mercados, desregulamentar e entrar na competição internacional.
Ao mesmo tempo, é difícil articular um debate mais amplo – até pela complexidade – de um serviço público de saúde com as necessidades de criação de indústrias locais, sejam elas públicas ou privadas.
Como a prioridade de estabelecer um sistema público de saúde já envolve a coordenação interfederativa de uma série de políticas de acesso, prevenção etc. incluir uma perspectiva de saúde pública para um debate que em geral é tido como de indústria ou desenvolvimento é sempre difícil. Porque, claro, nenhum país consegue criar uma indústria do dia para a noite. Não é só uma questão de falta de vontade.
Ao mesmo tempo, os Estados estão em crise. Então articular políticas que só vão ter repercussão daqui a várias décadas parece cada vez mais difícil. Como a face mais imediata do sistema de saúde é o acesso, a serviços, procedimentos, medicamentos, os países mais pobres acabam canalizando seus esforços para conseguir uma doação ou entrar num programa de licença voluntária, e não pensam em criar uma indústria nacional.
E o terceiro ponto é que pela correlação de forças hoje mesmo que essas indústrias sejam criadas elas ainda podem encontrar as barreiras das patentes farmacêuticas, o que significa que não se trata apenas de ter a capacidade mas de poder ou não um produzir certos medicamentos.
É o caso do sofosbuvir que poderia ser produzido pela Fiocruz, no Brasil, com economia calculada de R$ 1 bi para o Ministério da Saúde se não fosse pela patente concedida à Gilead pelo Instito Nacional de Propriedade Industrial em setembro do ano passado…
O caso mais recente no Brasil é esse, que demonstra claramente o tipo de obstáculos. Quando países criaram indústrias de genéricos ou países industrializados criaram suas indústrias farmacêuticas era um obstáculo que não existia, ou que existia num nível muito menor.


“As universidades no mundo realizam o grosso da investigação (…) e o problema é que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público realizado.”
Ao longo dessas negociações pela resolução da transparência, muitos argumentos sobre a necessidade de se abrir os custos da cadeia de produção se baseavam no fato de que o Estado participa dessa engrenagem, por exemplo, a partir das pesquisas realizadas pelas universidades públicas…
Isso é uma tendência que pode ser considerada global, inclusive em países nos quais se costuma dizer que o investimento é todo feito pelas empresas, todo privado. Mas quando a gente analisa de uma forma um pouco mais ampla, vê que por regra geral a pesquisa básica é realizada por instituições públicas e, depois, pode ser utilizada pelo setor privado. Sem a pesquisa base, uma pesquisa que chegue até um medicamento não tem de onde partir.
O ator talvez mais importante desse ecossistema são as universidades. No caso do Brasil, isso é muito claro do ponto de vista estatístico. Mas mesmo em outros países. E mesmo que você considere, por exemplo, universidades privadas, pois não é que elas deixam de receber dinheiro público. Seja via projetos, e no caso da União Europeia é muito dinheiro que vem para financiamento da pesquisa, ou no caso dos EUA via isenção de impostos e tributos. Ou seja, diretamente e indiretamente, o Estado participa da inovação.
Políticas estatais compõem a base para qualquer tipo de inovação, mesmo que ela ocorra nas empresas. Pegue uma empresa que inova muito e corte a eletricidade, corte a capacidade técnica das pessoas que estão lá, corte o apoio do próprio governo para garantir que a concorrência vai ser mantida e não baseada em grandes monopólios com lobby… Mesmo nessa perspectiva bastante liberal você continua precisando reconhecer que o Estado tem um papel central.
Mas eu iria até além. As universidades no mundo realizam o grosso da investigação, em especial nos primeiros estágios de um produto final, inovação essa que depois é levada para outros atores, sejam os departamentos de investigação das próprias empresas, sejam institutos de pesquisa mais voltados para ciência aplicada e o problema é que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público realizado. O lucro é revertido exclusivamente para o setor privado na forma de uma patente, por exemplo.
Como a pesquisa básica se transforma em pesquisa aplicada?
São muitos os arranjos possíveis. Grandes indústrias que têm o capital para realizar os testes clínicos compram contratos e licenças de empresas menores ou de institutos de pesquisa de origem pública. E ao mesmo tempo as parcerias público-privadas que cada vez mais tem ocorrido ao redor do mundo em tese preveriam um arranjo em que todos se beneficiariam. Mas que riscos ficam com o setor público e que benefícios ficam com o setor privado? Em muitos dos casos, não é um balanço equilibrado.
A indústria não tem demonstrado nenhum interesse em desenvolver alguns medicamentos que não seriam lucrativos. Nesse caso, não há transparência que resolva o problema…
O ponto crucial de todo esse debate é que mesmo que a gente tenha a maior transparência possível, mesmo que a gente consiga reduzir os preços dos medicamentos, continuamos a não ter soluções específicas ou totais para o problema das falhas de mercado da indústria farmacêutica, que são inúmeras.
Hoje em dia pela lógica privada do capitalismo você só vai investir se pensar que vai ter lucro. Então doenças raras ou aquelas não por acaso chamadas de negligenciadas só terão investimentos em pesquisa e, depois, medicamentos para tratá-las se a lógica de mercado for ultrapassada. Investimentos públicos são mais do que essenciais: são a única alternativa possível.
Quais são as ferramentas que os Estados têm hoje?
No direito internacional, os países tiveram na década de 90 uma restrição muito grande ao que eles podem fazer. Isso é por conta da criação da Organização Mundial de Comércio e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio [TRIPs, na sigla em inglês), que regula os aspectos relacionados à propriedade intelectual e obriga todos os países, incluindo os países de menor desenvolvimento relativo a reconhecer patentes farmacêuticas. Uma patente fornece um monopólio temporário para o seu detentor. Um monopólio permite ao monopolista cobrar o preço que ele quiser. Esse é um gargalo gigantesco porque esse é um monopólio lícito, pelo menos a princípio. Ele pode ser abusado – como muitas vezes é. Mas a questão é que, ainda sim, existem vários mecanismos dos quais os Estados podem lançar mão.
Isso incluiu o papel do Judiciário, inclui normas internas e diretrizes que são do escritório de patentes. No caso do Brasil, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial. E, claro, mudanças legislativas que podem aumentar ainda mais essa zona de exclusividade dos direitos dos detentores das patentes, em geral as indústrias internacionais, ou eles podem adotar uma perspectiva de saúde pública.
É importante ressaltar que isso não é uma luta contra a indústria por si mesma, nem uma luta contra as patentes. É basicamente usar o espaço que é reconhecido pelo próprio direito internacional, pelo próprio acordo TRIPs.
A licença compulsória é apenas um dos mecanismos, talvez o mais famoso, para intervir no caso de uma necessidade. Mas, por exemplo, países como a Argentina hoje têm uma quantidade de patentes farmacêuticas muito menor porque eles adotam critérios mais rigorosos para conceder uma patente. Se antes, a prescrição para uma doença era tomar certa pílula duas vezes ao dia e, agora, foi criada uma tecnologia que reduz isso para uma única pílula ao dia, por um lado você pode dizer que isso é uma inovação e por outro, olhando para os requisitos técnicos, que na verdade apenas uma segunda manifestação ou é um incremento muito pequeno.
Ou se você usava um remédio para tratar algo no estômago e se descobriu que tinha efeitos no fígado, um segundo uso, será que isso justifica mais 20 anos de direito de produção exclusivo? O lobby internacional das indústrias obviamente vai no sentido de aumentar sua própria proteção. Mas existe um espaço grande para que os países tenham bastante clareza e, inclusive, independente do ponto de vista ideológico porque a gente tem visto governos bastante díspares tomando esse tipo de posição em que por adotarem políticas que a gente chama de flexibilidade do TRIPs como critério rigorosos de concessão de patentes, como possibilidades de pedidos de oposição ao pedido de patente, como licenças compulsórias, como exceções para pesquisa, como critérios para medidas de fronteira, etc. a atuação dos países pode ter um impacto muito grande para reduzir o preço dos medicamentos.
Dito tudo isso, é importante entender que essa é uma faceta do debate. Ao mesmo tempo, de uma maneira mais geral do ponto de vista dos ministérios de saúde o que eu posso dizer é que apesar das restrições orçamentárias, uma coisa é certa: garantir acesso universal exige recursos. Não dá para dizer que o acesso a medicamentos e o acesso ao direito à saúde é plenamente compatível com políticas de austeridade.
Com outros setores econômicos e com outros produtos que não são tão essenciais para a manutenção da vida e do bem-estar, como carros, por exemplo, a gente consegue saber o custo? Essa transparência que a resolução italiana inicialmente propôs é uma coisa inédita ou já existe em outras cadeias produtivas?
Justamente pelo aumento da importância de medicamentos, vacinas e diagnósticos no debate sobre a saúde global é natural que também haja cada vez mais reflexões sobre o custo de pesquisa e desenvolvimento nessas áreas. Eu não acompanho tanto o que se tem falado em relação especificamente a isso, mas a minha impressão é de que se por um lado algumas das tecnologias envolveriam um modelo de inovação menos complexo bem entre aspas do que o setor farmacêutico, por outro lado ele também continua a ser como qualquer sistema de inovação imbuído de uma série de elementos de falta de transparência. O que exige, sim, uma reflexão sobre o que seria necessário, o que seria de específico para exigir transparência desses outros setores.
Mas aí talvez exista uma questão sobre o quanto de dentes que um mecanismo que seja criado necessita para realmente conseguir uma transparência de informações seja efetivamente possível de ser utilizada por países. Talvez um país bem pequeno que ainda não tenha condições de criar uma indústria enorme de medicamentos, talvez tenha condições de entrar em um mercado como o de equipamentos auditivos.
Mas se eles considerarem por um lado que não podem fazer isso e forem submetidos tanto a essas grandes pressões talvez eles não tenham nenhum incentivo para sequer pensar em adotar uma política nesse sentido.
Que lição fica de toda essa movimentação insana de negociações em torno da resolução na Assembleia Mundial da Saúde?
Um ponto central é a continuidade da reflexão sobre o conflito de interesses. Isso no âmbito não só na Organização Mundial da Saúde. O conflito de interesses entre as indústrias farmacêuticas e o funcionamento dos mercados; o conflito de determinadas agentes em relação ao sistema público. Ou seja, o debate sobre essa transparência também precisa incluir, ainda que indiretamente, a noção de que as regras do jogo têm que ser jogadas por todo mundo. E que, portanto, os incentivos, as condições e as informações têm que estar em igual capacidade para todo mundo. Aplicado no debate internacional, isso significaria dizer que os países em desenvolvimento precisariam ter os mesmos recursos, as mesmas informações que eventualmente outros países que sediam as grandes indústrias transnacionais têm. O que, obviamente, não acontece.
CLIQUE AQUI  e acesse a Resolução na íntegra

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Laboratórios de países em desenvolvimento debatem mercado de vacinas.

DA AGÊNCIA BRASIL - EBC

Laboratórios de 14 países participam nesta semana, no Rio de Janeiro, da 20ª Reunião Geral Anual da Rede de Produtores de Vacinas dos Países em Desenvolvimento (DCVMN, na sigla em inglês), organizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Além de inovações tecnológicas, gargalos para atender à crescente demanda global e questões regulatórias estão entre os temas que serão discutidos.

O evento começou hoje (21) e terá amanhã a sua sessão de abertura com representantes do Ministério da Saúde, da Fiocruz, da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-americana da Saúde. Está prevista a presença de 59 especialistas da área ao longo da reunião anual, que continua até quinta-feira.

O vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Marco Krieger, destaca que a produção dos países em desenvolvimento é importante para garantir o acesso da população às imunizações, já que as vacinas oferecidas por esses laboratórios são opções mais baratas que as das grandes farmacêuticas sediadas em países ricos.

"É importante que a gente tenha a noção de que essa produção local acaba garantindo acesso de populações a esses insumos de uma forma mais economicamente sustentável", afirma Krieger. "É um dos poucos mercados do mundo em que a demanda é maior que a produção. Principalmente para alguns tipos de vacinas".

Os gargalos ficam mais evidentes em situações como a dos surtos de sarampo enfrentados por diversos países do mundo, incluindo o Brasil. Por ter uma produção local forte, liderada por Bio-Manguinhos e pelo Instituto Butantan, o país está menos vulnerável, avalia o pesquisador.

"Chega a ser estratégico do ponto de vista nacional garantir que a nossa população tenha acesso a esses importantes insumos", afirma ele.

Bio-Manguinhos fornece ao Ministério da Saúde as vacinas tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), a tetravalente viral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela), a rotavírus humano, a febre amarela, a pneumocócica 10-valente conjugada, a poliomielite 1 e 3 oral, a poliomielite inativada, a Haemophilus influenzae b (Hib) conjugada e a DTP (difteria, tétano e coqueluche) e Hib combinadas. Dentre essas vacinas, a de febre amarela e a tríplice viral têm a produção completamente nacionalizada em Bio-Manguinhos, enquanto as demais são produzidas na unidade em processo de transferência de tecnologia de laboratórios parceiros.

Do Butantan saem seis vacinas para o Ministério da Saúde. Hepatite A, hepatite B, DTPa, Human Papiloma Virus (HPV) e Raiva inativada são produzidas no instituto por acordos comerciais com farmacêuticas parceiras que incluem a transferência de tecnologia para o instituto. A Influenza trivalente é produzida inteiramente no Butantan.

Fundador do grupo de países em desenvolvimento, o Brasil tem um Programa Nacional de Imunizações que se assemelha mais ao de países desenvolvidos pela quantidade de vacinas ofertadas gratuitamente, analisa o vice-presidente da Fiocruz. O país distribui anualmente mais de 300 milhões de doses de vacinas, soros e imunoglobulinas.

"Em alguns países, a industria está crescendo muito, como é o caso da China e da Índia, mas estão muito longe de ter a cobertura que temos e o número de vacinas que são ofertadas no nosso sistema público de saúde".

Mesmo assim, a troca de experiências com outros países em desenvolvimento é importante para a inovação e para alinhar estratégias frente a desafios como o movimento antivacina, que ainda é mais representativo em países desenvolvidos. "Aqui, é mais importante garantir o acesso a essas vacinas", acredita ele.

Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2019-10/laboratorios-de-paises-em-desenvolvimento-debatem-mercado-de-vacinas

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Acesso a medicamentos e produção local: Brasil na contramão do mundo – por Jorge Bermudez


Disponível no site da Federação Nacional dos Farmacêuticos - FENAFAR


Em artigo, o médico Jorge Bermudez, pesquisador da Ensp/Fiocruz; membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas, denuncia a ganância da indústria farmacêutica internacional e a dependência do Brasil como fator de enfraquecimento da soberania nacional, de negação do acesso de medicamentos às populações mais carentes e entrave para o desenvolvimento do país.


A recente notícia da concessão do centésimo Prêmio Nobel da Paz ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali, laureado por ter encerrado um conflito de 20 anos entre Etiópia e Eritreia com o Acordo de Paz assinado em julho de 2018, certamente nos remete à importância do continente africano no atual cenário global. A concessão desse prêmio não apenas enaltece os esforços de paz no continente, como também nos lembra que a Etiópia e sua capital, Adis Abeba, como sede da União Africana e seus 55 países, tem sido o eco das discussões pela implementação da iniciativa denominada PMPA (Pharmaceutical Manufacturing Plan for Africa), aprovada em 2007, na Cúpula de Accra, em Gana, e reenfatizada em 2011, em Durban, África do Sul, e que expressa a importância da produção local de medicamentos para assegurar o acesso das populações a medicamentos essenciais.
Relatório do Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos, tornado público em setembro de 2016, nos deixa claro que hoje o acesso a medicamentos, com os preços elevados e muitas vezes extorsivos praticados pela indústria farmacêutica, não é mais um problema restrito a países de renda baixa ou média, mas representa um problema em escala global e que vem sendo discutido em todos os foros, contrapondo saúde e comércio, ou direitos individuais e direitos coletivos e afirmando o direito à saúde como direito humano fundamental. Adicionalmente é advogada a desvinculação dos gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) dos preços finais praticados nos medicamentos.
É evidente que, sendo um problema global, os países do Norte preparam e explicitam estratégias potenciais para abordar esse problema. Não é sem estranheza que verificamos que os países mais ricos hoje tentam espelhar ações e lições que países em desenvolvimento desenvolveram no passado.
Os EUA discutem a necessidade de regulamentar e disciplinar os preços de medicamentos desde as últimas campanhas eleitorais. Em julho de 2019 foi lançada para discussão no Senado a proposta denominada de PDPRA (Prescription Drug Pricing Reduction Act), que aborda aspectos relacionados a informações de preços praticados, adequados níveis de pagamentos, aquisição de medicamentos e adequação de pagamentos baseados em custos, aquisição de biossimilares, entre outras questões, mas, sobretudo, a definição de um marco regulatório aplicável às empresas de seguro-saúde. De maneira inédita, há uma superposição nas propostas dos partidos políticos e que podem permitir que sejam aprovadas medidas de maneira negociada e consensual entre democratas e republicanos.
Já no Reino Unido, surgem propostas mais radicais, com o Partido Trabalhista propondo a iniciativa Medicines for the Many: Public Health before Private Profit, abordando a questão dos altos preços e reconhecendo que o atual sistema de inovação se encontra falido [link]. A proposta em estudo envolve críticas ao sistema e a necessidade de impedir as retaliações e ameaças ao uso de flexibilidades do Acordo Trips, e colocam Brasil, Índia e Argentina como modelos a observar nos requisitos de proteção patentária e seu impacto no acesso a medicamentos.
Consideramos importante fazer uma ressalva na utilização do Brasil como modelo. O nosso SUS, a Constituição Cidadã, o acesso universal, a saúde como direito de todos e dever do Estado, fazem parte do nosso acervo passado e histórico, hoje diuturnamente violentado pelas atuais incursões ultraliberais das nossas autoridades governamentais. O INPI, adicionalmente, responsável pelas análises de solicitações de patentes, não consegue aumentar seu quadro de examinadores e sofre propostas que aprofundam suas fragilidades.
Entretanto, é válido também ressaltar que a proposta atualmente em discussão no Reino Unido reconhece o papel que a produção pública vem jogando no Brasil e no SUS, chamando a atenção para o papel dos laboratórios públicos na provisão de antirretrovirais (ARVs). O documento também enaltece as iniciativas desenvolvidas em Cuba, Holanda, China e Canadá.
Em nítida contraposição às discussões que vemos no mundo e que povoam os debates nas esferas das Nações Unidas, hoje o Brasil e sua atual gestão desconstroem políticas consolidadas ao longo dos 30 anos do SUS e desmonta o setor público de produção farmacêutica.
A imprensa noticia a extinção da Furp [Fundação para o Remédio Popular de São Paulo], desmonte que vem sendo criticado pela corporação de farmacêuticos, baluarte na defesa da produção pública, um dos maiores e mais bem sucedidos laboratórios públicos e que vinha cumprindo papel fundamental no atendimento à população, na referência e capacitação de recursos humanos e na incorporação de tecnologias de produção farmacêutica capazes de efetivamente diminuir nossa dependência tecnológica. Alega-se, para sua extinção, que se trata de um governo de “desestatização” e que não cabe ao governo fabricar medicamentos, nitidamente na contramão do mundo!
Lamentavelmente, esse é o cenário no qual o Brasil mergulha sem escafandro, um mergulho suicida, a seguir as diretrizes atuais. Resta saber até onde iremos e o que sobrará nos escombros. A História certamente nos condenará pelo mundo que deixaremos para nossas futuras gerações! Para nós, as palavras de ordem são Luta e Resistência!
Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz
Publicado em 15/10/2019



quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Seminário abordará os desafios do acesso a medicamentos no Brasil.



Quais os desafios do acesso a medicamentos no Brasil? Seminário vai abordar a questão do acesso a medicamentos seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos.

Promovido pela iniciativa Saúde Amanhã, no contexto da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, o seminário abordará o cumprimento do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3.8 e 3.b da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU), voltado para a questão do acesso a medicamentos seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos. 


O programa conta especialistas convidados Vera Lúcia Luíza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Rondinelli Mendes (Ensp/Fiocruz) e Jorge Costa (Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde/Fiocruz).

Haverá debate com os convidados Antônio Carlos Bezerra, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e Especialidades (ABIFINA), Norberto Rech, professor do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de Santa Catarina e Suzete Henrique da Silva, superintendente de assistência farmacêutica e insumos estratégicos da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro.

Data: Sexta-feira, 04 de outubro
Horário: 9h30
Local: Auditório do Centro de Documentação e História da Saúde - Casa de Oswaldo Cruz (CDHS/COC/Fiocruz) - 4º andar.
Outras informações: saudeamanha.fiocruz.br www.icict.fiocruz.br




sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Farmacêutica deverá ressarcir estado por compra de remédio .

Do Jornal Folha de São Paulo

Justiça condenou laboratório acusado de induzir pacientes de estudo clínico a processar estado para receber a droga


Cláudia Collucci

A farmacêutica Sanofi Genzyme foi condenada pela Justiça de São Paulo a ressarcir o governo paulista por gastos com a compra de remédio destinado a crianças com doença genética.
O laboratório é acusado de, após obter o registro do medicamento no Brasil, dispensar pacientes que participaram de estudo clínico, induzindo-os, mesmo que indiretamente, a processar o estado para conseguir a nova droga.
O valor da ação está estimado R$ 150 milhões. A decisão de primeira instância é inédita no país, mas cabe recurso. Em nota, A Sanofi Genzyme informa que não foi notificada sobre essa decisão e que não comenta ações judiciais em andamento.
No Brasil, há resoluções que responsabilizam as farmacêuticas pelo fornecimento de remédios a pacientes sujeitos de suas pesquisas. Na Justiça, porém, o assunto é controverso porque não existe uma legislação específica. Em outras duas ações judiciais movidas pelo estado pela mesma razão, por exemplo, as decisões foram favoráveis às farmacêuticas.
A ação civil pública foi movida pela Fazenda Pública paulista contra o laboratório Genzyme (adquirido pela Sanofi em 2011) após uma investigação cruzar nomes de pacientes que participaram de testes clínicos com droga Aldurazyme (Laronidase) e descobrir que, logo após o término do estudo, eles se tomaram autores de ações judiciais contra o estado para obter o remédio.
A investigação foi feita pela Corregedoria- Geral da Administração, Advogacia-Geral da União e o Ministério da Saúde. Segundo a denúncia, o objetivo da pesquisa foi obter o registro do remédio na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). À época, ele estava aprovado nos Estados Unidos e na Europa.
A pesquisa envolveu nove crianças com mucopolissacaridose, doença genética que impede a produção normal de enzimas essenciais aos processos químicos vitais, comprometendo ossos, vias respiratórias, sistema cardiovascular e funções cognitivas.
O Aldurazyme é o único no mercado para tratamento da síndrome. O estudo foi conduzido pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Segundo o procurador do estado Luiz Duarte de Oliveira, mesmo antes do término dos estudos clínicos, em janeiro de 2006, representantes legais de sete das crianças envolvidas no estudo começaram a impetrar mandados de segurança contra o governo paulista, por meio de uma associação de pacientes, pedindo o remédio. Todas as decisões foram favoráveis às crianças.
"Ocorre que, no Brasil, os laboratórios têm obrigação de cuidar dos pacientes sujeitos de pesquisas clínicas, principalmente quando o resultado é benéfico. Isso implica dar continuidade ao tratamento até a cura ou o resto da vida deles" afirma Oliveira.
Resoluções do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional da Saúde entendem que é o dever do patrocinador de pesquisas clínicas continuar a fornecer o tratamento após o término dos estudos até quando houver indicação médica.
No termo de consentimento assinado pelos pacientes com a pesquisadora responsável pela pesquisa, a médica Ana Maria Martins, também estava assegurada a continuidade do tratamento. Durante o processo, o laboratório alegou que não existe dever legal de doação perpétua do medicamento aos participantes de estudos clínicos.
Hoje, o governo paulista fornece remédios a seis crianças (a sétima já morreu) e gasta por mês, com cada uma, de R$ 50 a R$ 70 mil. "É mais ou menos um carro Toyota por mês", compara o procurador.
Em sua decisão, a juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti determinou que o laboratório, além de ressarcir o estado, entregue, mensalmente, sem custos ou despesas, o medicamento às crianças. Também o condenou por danos morais coletivos.
De acordo com Luiz Oliveira, como o estado está obrigado por força da outra decisão judicial a fazer essa entrega até o fim da vida das crianças, a partir de agora a farmacêutica deverá repassar gratuitamente os remédios ao poder público para que ele os encaminhe aos pacientes.
Na sentença de 11 páginas, consta que pais das crianças foram orientados pela equipe médica que conduzia o estudo na Unifesp a processar o estado, por meio de uma associação de pacientes, com sede em Campinas (SP).
Em sua defesa, a farmacêutica Sanofi alegou que a ação era improcedente, uma vez que os estudos clínicos não tiveram qualquer relação com o registro da droga no Brasil. Afirmou ainda que os voluntários dos estudos ingressaram com ações judiciais voluntariamente, sem ingerência do laboratório, e que o fornecimento do medicamento sempre foi garantido.
No processo judicial, a mãe de uma das crianças que participaram do estudo clínico disse que a filha iniciou o tratamento em 2005 e seguiu até meados de 2006, quando saiu a liminar para obter o medicamento por meio do estado.
Ela afirmou que foi instruída a ingressar com a ação pela equipe da Unifesp.
"A médica comentou: 'Nós vamos ter um tratamento custeado pelo laboratório até um certo tempo, durante a pesquisa; depois de um certo tempo a gente tem que entrar com a liminar", disse em depoimento.
A advogada Maria Cecilia Mazzariol Volpe, da Associação dos Familiares Amigos e Portadores de Doenças Graves, ingressou com as ações. Em nenhum momento é citado que as crianças participaram de testes clínicos.
"Omissão, no mínimo, dolosa, uma vez que a própria médica que desenvolveu as pesquisas também prescreveu as receitas que fundamentaram as demandas", diz a juíza em trecho da sentença.
Ela afirma ainda que não é possível imputar diretamente à farmacêutica a responsabilidade pelos pacientes terem processado o estado, mas reforça que isso ocorreu por meio de orientação dada pela médica responsável pela pesquisa, que firmou contrato do estudo com o laboratório.
"Porém, a sua responsabilidade pela manutenção do fornecimento do medicamento, após o término dos estudos clínicos, é inconteste. A ré descumpriu os preceitos éticos e desrespeitou o princípio da dignidade da pessoa humana", afirmou ela.
Procurada na segunda-feira (12) por meio de mensagem de celular e da assessoria de imprensa da Unifesp, a médica Ana Maria Martins disse na terça (13) que estava em evento científico fora do país e, por isso, indisponível para avaliar o assunto.
A advogada Maria Cecília Mazzariol Volpe foi procurada por e-mail e por telefone na associação que dirige em Campinas. Segunda a atendente, ela estava ciente do assunto, mas não retornou o contato.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Judiciário só pode sair de lista da Anvisa em situações excepcionais, decide STF.



DO SITE CONSULTOR JURÍDICO - Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2019, 17h27

Por ANA POMPEU

O Estado não pode ser obrigado a fornecer remédios experimentais. O dever é o de fornecer os  remédios previstos nas listas da Anvisa. Foi o que definiu na manhã desta quarta-feira (22/5) o Plenário do Supremo Tribunal Federal.

De acordo com a decisão, ações judiciais sobre o tema devem ser direcionadas à União. Mas o Judiciário não pode determinar o fornecimento de drogas experimentais "indiscriminadamente", mas apenas em casos excepcionais, como com a demora da autarquia em apreciar o remédio em questão, a existência de registro em agências de regulação no exterior, a inexistência de alternativa terapêutica.

A decisão foi tomada por maioria. Os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio ficaram vencidos.
O colegiado retomou em sessão extraordinária nesta manhã a análise de processos que envolvem a judicialização da saúde. Quatro recursos extraordinários estão na pauta, todos com repercussão geral reconhecida. Os casos tratam do fornecimento de remédios de alto custo não disponíveis na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) e não registrados na Anvisa.
A discussão foi retomada com voto-vista do ministro Alexandre de Moraes, que herdou os processos do gabinete do ministro Teori Zavascki, de quem assumiu a vaga. Segundo Alexandre, o Judiciário precisa ponderar que, embora a Constituição garanta o direito fundamental à saúde, as decisões em demandas judiciais individuais podem causar desequilíbrio na política pública, prejudicando a coletividade.
"O dinheiro vem de alguém lugar, e está sendo retirado da aquisição de medicamentos planejados no fornecimento dentro das políticas públicas previstas", disse o ministro. Ele disse entender a situação do juiz de primeiro grau, que se vê diante da angústia de um paciente específico. Mas também é preciso olhar para a capacidade do poder público de "sustentar financeiramente todas as políticas públicas". 
Para a ministra Rosa Weber, o Supremo deve estabelecer que o registro na Anvisa é indispensável para que o Judiciário autorize o fornecimento. Conclusão diversa, disse ela, só pode ser alcançada em casos concretos.
Sem sucesso


"A excessiva judicialização da saúde pública não tem sido bem sucedida", afirmou o ministro Alexandre de Moraes, em seu voto.

O ministro Ricardo Lewandowski defendeu que é preciso pesar a posição social do paciente e da família para decidir sobre o fornecimento, ou não, do medicamento pedido.


De acordo com o Ministério da Saúde, os dez remédios mais caros para tratamento de doenças raras representaram 87% do R$ 1,4 bilhão gasto com a "judicialização da Saúde" em 2018. Para atender a mais de 1,5 mil pacientes, o governo teve de arcar, na média com cada paciente, cerca de R$ 759 mil, num total de R$ 1,2 bilhão em 2018.
Segundo Alexandre, a Advocacia-Geral da União aponta que, somente no âmbito federal, segundo dados atualizados, os valores que não chegavam a R$ 200 milhões em 2011 alcançaram, em 2018, R$ 1,316 bilhão, um “crescimento exponencial desses valores que são destinados a poucas pessoas e acabam fazendo falta a milhares de pessoas".
Na balança

"Eu me coloco dentro daquilo que é unanimidade dos colegas da corte: não é possível exigir-se sempre o remédio que não consta da lista, mas é possível de ser estabelecido diante de circunstâncias excepcionais", disse o ministro.
"As condições teriam que ser estabelecidas conforme o alto custo do medicamento, a hipossuficiência do paciente e da família, a comprovação robusta da necessidade de fornecimento por meio de laudo técnico, a eficácia atestada por entidade congêneres, como uma universidade, a demora de análise pela agência, e não seriam possível o custeio de medicamentos proibidos, e que o interessado informe periodicamente a evolução do tratamento de maneira a comprovar a eficácia."


quarta-feira, 9 de maio de 2018

Decisão do STJ sobre medicamento de alto custo deforma conceito do direito à saúde.

EXTRAÍDO DO SITE CONJUR

1. A polêmica decisão do STJ

Lamentavelmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sofrido abalos em sua gestão, seja por propostas não condizentes com seus regramentos constitucionais e legais, seja pelo subfinanciamento, sua difícil gestão e tentativas de sua desconstrução. E muitas vezes os que pretendem protegê-lo e zelar pela sua efetividade cometem falhas perturbadoras, mesmo imbuídos das melhores intenções.

Recentemente, em 25 de abril, a 1ª Seção do STJ concluiu julgamento de que constitui obrigação do poder público a garantia de medicamentos indispensáveis, mesmo quando não integrantes da Relação Nacional de Medicamentos do SUS (Rename), modulando seus efeitos para somente ter validade para ações judiciais distribuídas a partir dessa decisão. A obrigação pública somente será devida quando presentes, de modo cumulativo, os seguintes elementos:
a) comprovação pelo autor da ação, mediante laudo fundamentado pelo médico que o assiste, quanto à imprescindibilidade do medicamento em comparação aos garantidos pelo SUS;
b) demonstração da incapacidade financeira do demandante de arcar com os custos do medicamento; e
c) registro do medicamento na Anvisa.
Por mais que a decisão possa parecer meritória e humanitária, ela fere relevante princípio do direito à saúde, que é o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação. Tal decisão não fere tão somente o princípio do acesso universal e igualitário, como também outras diretrizes do SUS, devendo ser analisada sob os seguintes ângulos:
a) o sistema de seguridade social;
b) o princípio do acesso universal e igualitário que rege o direito à saúde;
c) o demandante ser usuário do SUS, de modo integral;
d) o que são e não são ações e serviços de saúde para efeito da aplicação dos valores mínimos em saúde; e
e) os aspectos que envolvem a exclusão, alteração e incorporação de tecnologias no SUS (medicamentos, produtos e procedimentos).
2. O sistema de seguridade social

A seguridade cocial compreende a saúde, a previdência e a assistência social, nos termos do artigo 194 da Constituição, a qual deve ser financiada (artigo 195) por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de contribuições sociais.

A Constituição, ao definir as suas três áreas, seus princípios e diretrizes, determinou que cada área deve gerir os seus recursos de acordo com suas características, conceito, princípios e diretrizes estatuídas nos seus artigos 196, 201 e 203.
3. A saúde

A saúde é definida no artigo 196 como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que evitem o risco do agravo à saúde e também mediante o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação. Seus princípios são a segurança sanitária (evitar riscos de agravos), o acesso universal (todo cidadão tem direito) e acesso igualitário (sem distinção de nenhuma ordem), os quais devem pautar suas políticas.

Claro está, pois, que o acesso às ações e serviços de saúde realizados pelo SUS, nos termos do artigo 198, deve observar os princípios da universalidade e o da igualdade. A Constituição, tampouco a Lei 8.080, de 1990, impuseram condicionantes para o exercício do direito ao acesso às ações e serviços de saúde como: classe social, pobreza, pagamento direto ou copagamento, idade e outros.
Desse modo, não se pode impor condicionantes para a satisfação do direito à saúde, lembrando que regramentos administrativos e da técnica-sanitária de organização do sistema, como a definição pelo Decreto 7.508, de 2011 (portas de entrada – artigo 9º e 11); lista única de transplante; critério cronológico para o atendimento ou o risco à saúde são ordenações do acesso, e não impedimentos ou condicionamentos.
4. A assistência social

A assistência social somente é garantida a quem dela necessitar em razão das insuficiências financeiras, vulnerabilidades, carência das pessoas em relação aos mínimos existenciais, independentemente, por óbvio, de contribuição à seguridade social, seja de forma direta ou indireta (artigo 203). A assistência social provê os mínimos necessários para a garantia da dignidade humana, havendo, assim, condicionantes para o acesso aos seus serviços que é ser carente.

5. A Previdência Social

A Previdência Social, por sua vez, nos termos do artigo 201 da Constituição, deve ser organizada sob a forma de regime geral de caráter contributivo e filiação obrigatória. Somente aqueles que são integrantes do regime geral da Previdência Social podem fazer jus aos seus benefícios e como integrantes ficam obrigados a pagar contribuição direta, na forma da lei, além de o vínculo com a previdência social ser obrigatório para todos os trabalhadores formais, autônomos, empresários e outros.

De modo resumido, temos que: a) a saúde deve se organizar de modo a garantir o acesso universal e igualitário, sem barreira ou condicionante; b) a assistência social somente é garantida a pessoa carente do mínimo existencial; e c) a Previdência Social é garantida mediante contribuição direta, estabelecida em lei.
6. Os princípios do acesso universal e do acesso igualitário

O acesso universal e igualitário se constitui princípios do SUS — o princípio da universalidade de acesso e o princípio da igualdade de atendimento —, dispensando condicionantes e pré-requisitos para a satisfação do direito. A Constituição determina que a saúde pública deve se organizar de modo a garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação.

A Constituição não estabeleceu critério de elegibilidade para o cidadão fazer jus aos serviços de saúde, assim não poderia a lei nem o seu intérprete impor condicionantes a esse acesso, como ocorre com a decisão do STJ que exige demonstração pelo paciente de sua incapacidade financeira de prover o medicamento, ferindo assim o princípio do acesso universal.
7. Ser usuário do SUS de modo integral

O SUS, para garantir serviços ao cidadão, deve se organizar administrativa e sanitariamente. Essa organização deve se sustentar em seus princípios e diretrizes constitucionais e legais, além das diretrizes insertas nos incisos I a III do artigo 198 da Constituição.

Suas políticas de saúde devem ser em acordo às normas, princípios e diretrizes constitucionais e legais, e sua execução, conforme regramentos legais e infralegais administrativos, técnico-jurídicos e sanitários. Quem não observar seus regramentos não pode exercer seu direito constitucional, como um eleitor que decidisse votar fora das normas impostas, como zona eleitoral, sessão, horário.
Por isso, chamamos a atenção para as pessoas que optaram por tratar-se nos serviços de saúde privados. Elas podem acessar o SUS a qualquer momento, desde que respeitem suas normativas quanto ao acesso que requer que o paciente seja examinado e diagnosticado por médico do SUS, responsável pela prescrição de exames ou de terapêutica. O que não se pode admitir é que quem optou pela saúde privada queira adentrar ao SUS não pelas suas portas de entrada, mas, sim, fora de seus regramentos, pretendendo obter de modo complementar ao seu tratamento privado aquilo que o médico privado determinar. Há regras vedando tal procedimento, como o artigo 28 do Decreto 7.508, de 2011. Caso o cidadão queira tratar-se no SUS, deverá fazê-lo em acordo às suas portas de entrada.
O atendimento integral é via de mão dupla: tanto o SUS deve ver a pessoa de modo integral em suas necessidades como a pessoa deve adentrar o SUS de modo integral, não podendo escolher um médico particular e pretender que o médico do SUS adote a mesma conduta diagnóstica e terapêutica, caso tenha outra conduta médica.
8. Definição do que são e não são ações e serviços de saúde para efeito da aplicação dos valores mínimos em saúde

A Lei Complementar 141, de 2012, estabelece discriminação positiva e negativa em relação às ações e serviços de saúde. O artigo 3º discrimina positivamente o que são considerados ações e serviços, e o artigo 4º discrimina negativamente, determinando o que não pode ser considerado como ações e serviços de saúde para fins da aplicação dos percentuais mínimos de recursos, estatuindo, dentre outras, que a assistência à saúde que não atende ao princípio de acesso universal não se constitui como ação e serviço de saúde do SUS, bem como as ações de assistência social.

O STJ, ao determinar que medicamentos de alto custo não previstos na Rename devem ser concedidos ao pleiteante hipossuficiente, está adentrando o campo da assistência social, ferindo o princípio do acesso universal, incidindo na vedação acima mencionada. Romper o princípio da universalidade do acesso implica em não poder utilizar recursos da saúde para o custeio de tal despesa, nos termos da lei complementar. Aqui há dois equívocos, a obrigatoriedade de o SUS garantir medicamento não previsto na Rename e ainda o paciente ter que comprovar a sua hipossuficiência.
9. Competência para excluir, alterar e incorporar tecnologias no SUS (medicamentos, produtos e procedimentos)

Outro elemento essencial para o SUS é a incorporação de tecnologia para compor a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases) e a Relação Nacional de Medicamentos (Rename). A Lei 12.401, de 2011, que alterou a Lei 8.080, de 1990, para regulamentar a atenção terapêutica integral (integralidade strictu senso), estatui o que compreende a atenção terapêutica integral: medicamentos, produtos e procedimentos.

Os medicamentos, produtos e procedimentos em suas alterações, inclusões e exclusões devem ser objeto de pedido de terceiro ou das próprias autoridades sanitárias do SUS à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde (Conitec), a qual, mediante estudos e análises quanto à eficácia, efetividade, evidências científicas, acurácia e custo-benefício, emitirá parecer fundamentado à autoridade do Ministério da Saúde que o observará ou não, mediante justificativa.
A Rename e a Renases torna público o que o SUS garante ao cidadão. E nem poderia ser de outro modo. Primeiro, porque não há direito absoluto nem serviços públicos sem regras de funcionamento e organização.
É lastimável que o SUS, que padece de subfinanciamento, de problemas em sua gestão, de profusão de inovações, de ataques de todas as ordens, de intensa judicialização, tenha que incorporar tecnologia, ao largo das normas da lei, louvando-se tão-somente na informação do médico do paciente, sem se cercar das cautelas necessárias para a incorporação, conforme determina a Lei 12.401, de 2011. Cada médico tem suas preferências, correntes técnico-científicas sobre a eficácia de medicamento nesse imenso mercado farmacológico. Basta o número de farmácias existentes em cada cidade e o crescente gasto direto com medicamento pela população brasileira[1].
Determinar o Poder Judiciário que todos os medicamentos de alto custo não incorporados devem ser concedidos ao usuário do SUS sem condições financeiras de custeá-los, fundado em laudo médico, causará sem dúvida sérios problemas ao SUS, ainda mais quando se sabe como atua esse imenso mercado de farmacológico[2], além de ferir o princípio da universalidade.
Também preocupa o Poder Judiciário usar da competência das autoridades sanitárias previstas no artigo 9º da Lei 8.080, de 1990, para gerir o SUS no território nacional, e da Conitec também.
Se ao menos o Poder Judiciário decidisse ouvir a Conitec sobre o porquê da não incorporação de determinados medicamentos para então julgar se se trata de pura restrição orçamentária em desrespeito ao direito à saúde ou de medicamento sem evidência científica, ou, ainda, quanto o seu custo-benefício em relação a medicamento existente.
10. Considerações finais

Como vimos acima, decisão do STJ a respeito da garantia de medicamentos de alto custo, com registro na Anvisa, mas não incorporado no SUS, viola princípios do SUS e deforma o conceito do direito à saúde quanto à garantia de acesso universal e igualitário.

Ao introduzir o elemento da hipossuficiência, quebrou a universalidade de acesso por exigir do cidadão a comprovação de sua pobreza para a compra daquele medicamento, fato não existente no SUS por infringir a Constituição[3] e todo o arcabouço jurídico que sustenta o direito à saúde de acesso universal; feriu ainda a Lei 8.080, em seu artigo 9º, que define quem são as autoridades públicas competentes para dirigir o SUS e seus artigos 19-M a 19-U; os artigos 9º, 11 e 28 do Decreto 7.508, de 2011, que estabelece as portas de entrada do SUS e sua ordem de atendimento; o artigo 3º, inciso II e o artigo 4º, incisos III e VIII da Lei Complementar 141, de 2012, criando embaraço para o gestor da saúde que não poderá incluir no gasto mínimo com saúde os recursos dispendidos com medicamentos que não são de acesso universal, por atender pessoas comprovadamente carentes para a sua aquisição, adentrando o campo da assistência social.
Fere ainda a racionalidade, a razoabilidade e o bom senso ao garantir medicamento fora da padronização do SUS. Não há sistema que resista tanta interferência externa em sua organização e funcionamento.
Se não tem sido fácil administrar o SUS com os recursos insuficientes, com uma administração pública que até os dias de hoje não se modernizou para atender aos reclamos sociais de modo ágil e eficiente, mais difícil ainda com medidas liminares definindo o que o SUS deve e não deve fazer, interferindo na competência da Conitec para dispor sobre a incorporação de medicamentos; como o dirigente poderá cumprir o seu planejamento, plano de saúde, programação anual?
Por fim, resta ainda o julgamento da STA 175 (2010) pelo STF (ação com reconhecida repercussão geral da matéria – RE-RG 566.471 e 657.718), que poderá concluir ou não pela admissão do critério da hipossuficiência, mencionada no voto do ministro Marco Aurélio quanto à concessão de medicamento não incorporado no SUS e também os para doenças raras não registrados na Anvisa.
O Poder Judiciário poderia tentar colocar as coisas em seus devidos lugares ao determinar que medicamento sem registro na Anvisa não pode ser comercializado no Brasil por ferir o princípio da segurança sanitária e expressamente o artigo 12 da Lei 6.360, de 1976. Talvez poderia permitir ao particular a importação de medicamento sem registro para uso individual, as suas custas, e, quando se tratar de medicamento com registro fora da Rename, consultar a Conitec sobre seus requisitos de cunho técnico-sanitário, quando necessário.
Manter o SUS vivo, qualitativo, com bom nível de satisfação coletivo, requer das pessoas nele envolvidos conhecimento sobre sua organização e funcionamento e serenidade frente as demandas por se tratar de um sistema para mais de 200 milhões de pessoas, desconfiança em relação às inúmeras inovações tecnológicas que na maioria das vezes não as são de fato, visando mais os altíssimos lucros para seus acionistas do que o bem-estar das pessoas, severidade quanto às emoções.
O SUS depende de todos; não sobreviverá se for considerado uma porta aberta à incorporação de medicamentos, produtos e procedimentos e demais desejos de consumo de saúde, sem as necessárias cautelas.

[1] Consultar www.oiapss.org.br e sua matriz de dados comparativos ibero-americanos a respeito do gasto com medicamentos pelas próprias pessoas.
[2] Consultar a obra de Peter Gotzsche, Medicamentos Mortais e Crime Organizado, Editora Bookman, 2014.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2018-mai-05/lenir-santos-decisao-stj-medicamento-alto-custo