Por Alexandre Padilha
Publicado na Carta Capital
Golpe é
golpe, não é apenas uma alternância de governo ou poder. A tomada do Palácio do
Planalto pela aliança partidária PMDB/PSDB/DEM, alicerçada por um bloco
histórico com atores do Judiciário, do aparato policial, das parcelas
monopolistas da mídia e financiada pelos setores econômicos nacionais e
internacionais, deixaram claro a que vieram, desde os seus primeiros movimentos
e discursos. Apesar do golpe ter recebido apoio de parcelas da população sob o
apelo da retomada econômica e do combate à corrupção, não é esta a agenda das
suas ações e movimentos desde o seu início.
Depois de seis meses, qual a ação, atitude, lei ou
programa foi desenvolvido até agora com foco no fortalecimento do combate à
corrupção ou de recuperação da atividade econômica? Nenhum. Qual tem sido a
capacidade da aliança política-social-econômica em superar a crise política e
institucional instalada no país desde a derrota eleitoral do PSDB, em 2014?
Nenhuma. É um governo cujos atores estão imersos e partícipes da crise. A única
agenda para qual as atitudes e projetos são claros é a destruição do Estado
instituído pela Constituição de 1988, plataforma para ampliação de direitos e
conquistas sociais e base para o mais longo período democrático da história do
Brasil. Os bastidores e o desfecho do acordão da contenda Senado e STF, na
última semana, provou claramente que, mais do que a agenda prioritária, a
destruição dos pilares sociais da nossa Constituição e das conquistas sociais
recentes é a única agenda que atualmente unifica todos os atores da aliança
golpista. Aceita-se tudo, fecham-se os olhos para tudo, silencia-se sobre tudo,
desde de que não se atrase a votação da PEC do congelamento. A sua aprovação
marcará o início de mais uma fase da história da República Brasileira.
Assim como o AI5 foi apenas o quinto ato do regime
militar, quatro anos depois do golpe e deu o tom da face mais cruel do Estado
instalado, o esforço para a aprovação da PEC do congelamento deixa claro qual a
disposição da atual aliança que tomou o Brasil.Tancredo Neves teve a sorte,
ainda em vida, de cunhar a expressão a "Nova República" com o fim da
era dos governos militares. Como será denominada a República do golpe de 2016?
Certamente ainda está para ser cunhada (sem trocadilho com um dos líderes do
golpe) e não virá da boca do presidente golpista, mas ela terá a marca de ter destruído
qualquer amparo para a garantia dos Direitos garantidos na Constituição de
1988: uma República Sem Direitos.
A PEC que institui um longo e rigoroso inverno de
20 anos de congelamento dos investimentos públicos não pode ser entendida
apenas como um instrumento de ajuste fiscal. Nenhum ajuste fiscal e nenhuma
crise justifica um novo regime de congelamento dos investimentos públicos
durante um período de 20 anos, a não ser se os seus defensores acreditassem que
ficaremos por 20 anos em crise econômica, o que seria um contrasenso no próprio
capitalismo. Criar um novo regime fiscal por duas décadas só se explica por
dois motivos: o primeiro, provar para quem financiou e propagandeou o golpe por
meio da desestabilização do governo eleito pelo voto popular que a aliança
PMDB/PSDB/DEM/Mídia/Judiciário tem força e maioria congressual para aprovar o
que quiser, já que tem condições de aprovar um austericídio como esse. O
Segundo, aproveitar a crise econômica e o golpe, para destruir a garantia dos
Direitos no campo da Seguridade Social, inviabilizando definitivamente o SUS, a
Previdência Social, a expansão no acesso e qualidade da Educação e a política
de transferência de renda e valorização do salário mínimo, para falar das
políticas públicas mais impactantes. Ou seja, criar um regime fiscal que
inviabiliza os Direitos garantidos na Constituição de 1988.
Criar uma regra e uma expectativa de congelamento para todos
os atores envolvidos no campo de saúde é dizer que a expressão “Saúde é um
direito de todos e um dever do Estado” contida em nossa Constituição será letra
morta. Se o SUS, aposta inédita para um país de 200 milhões de habitantes e
fruto de um consenso possível da Constituição de 1988, que envolveu interesses
de vários segmentos, inclusive privados, já respira por aparelhos desde a sua
criação, a PEC do congelamento é o ato de desligá-los, deixando este jovem de
28 anos sem expectativa de suporte.
Os impactos da aprovação da PEC do congelamento
para o Direito à Saúde já foram bem descritos. Ao ser adotada como critério de
correção dos investimentos feitos pelo Ministério da Saúde nos próximos 20 anos
significará uma perda de R$ 205 bilhões, caso fiquemos em 0% de crescimento da
economia, a R$ 400 bilhões nos recursos para a saúde se crescermos 2%. Isto
significa uma redução dos investimentos federais por habitante em saúde dos
atuais R$ 519 para R$ 411 daqui há 20 anos. Segundo o relatório de 2015 da
Organização Mundial da Saúde (OMS), o setor público no Brasil investe por
habitante de 4 a 11 vezes menos do que outros países que buscam garantir
atendimento público e gratuito à sua população. Investimos menos que a
Argentina e o Chile, por exemplo: Brasil (US$ 591), Argentina (US$ 1,16 mil),
Chile (US$ 795). Quando comparamos o investimento público do Brasil em relação
ao nosso PIB (3,8%), segundo dados de 2014, investimos menos até do que a
Colômbia (5,4%), Equador (4,5%) e Paraguai (4,5%). A PEC vai fazer com que esta
situação piore ainda mais, porque congela os investimentos em saúde por 20
anos, independente do crescimento da economia, do crescimento da população e do
aumento de preços dos produtos, medicamentos e serviços de saúde. Importante
lembrar que, em geral, este aumento fica de 1,5 a 2x maior do que a inflação
geral medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).O Brasil
já investe pouco em Saúde Pública. Com esta PEC congelará este investimento.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em
cerca de 20 anos (de 1990 a 2012) o Brasil reduziu em 77% a mortalidade
infantil. Foram 177 mil crianças por ano que deixaram de morrer até os 5 anos.
Essas crianças, que antes morriam, felizmente agora precisam de mais cuidado.
Congelar os investimentos pelos próximos 20 anos é fingir que essas crianças
não sobreviveram. Segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), hoje temos cerca de 25 milhões de brasileiros com 60 anos
ou mais. Daqui a 20 anos, serão cerca de 49 milhões. Um estudo a partir de
dados do SUS mostra que 44,3% das pessoas com mais de 60 anos procuraram no
mínimo três vezes o médico em um ano, e cerca de 10% foi internada pelo menos
uma vez. Em 2015, o gasto médio do SUS para pessoas de 60 a 69 anos foi 73%
maior do que as pessoas de 30 a 39 anos. Congelar os investimentos no atual
nível por 20 anos é esquecer que teremos mais idosos procurando mais serviços
de saúde e dependendo mais do SUS.
Parlamentares, que nos últimos anos se
notabilizaram na oposição aos então governos Lula e Dilma, que defendiam mais
recursos para a saúde sem discutir medidas de justiça tributária para
financiá-lo e que agora são os porta-vozes e relatores da PEC do congelamento,
ainda tentam dizer que a mesma não necessariamente impõe a mesma regra para o
setor saúde.Em tal argumentação, os recursos para continuar a expansão do SUS
poderiam vir da redução de outros investimentos públicos. Esse conto da
carochinha, se viável, significaria cortes ainda mais intensos na Educação,
políticas de transferência de renda e salário mínimo, previdência social,
reestruturação e valorização de carreiras públicas, com impactos diretos na
saúde das pessoas. Mais do que a evolução do PIB, diversos estudos mostram que
indicadores de desemprego, queda de renda e redução da capacidade de consumo
apresentam uma relação direta com a vida e a saúde das pessoas. O desemprego
está diretamente relacionado à insatisfação, depressão e insônia. Nos países
europeus para cada 1% de aumento da taxa de desemprego há o registro de 0,79%
de aumento na taxa de suicídio. A queda na renda gera impacto direto nos
padrões de consumo das famílias, nos hábitos alimentares, no aumento do consumo
de bebida alcoólica com mais alto teor etílico, profunda restrição de acesso ou
interrupção de tratamentos continuados. O medo do desemprego leva o trabalhador
a se expor mais ao trabalho com resultados diretos em doenças ocupacionais ou
perda de qualidade de vida. Crises econômicas são acompanhadas de aumento nos
índices de violência, doméstica e urbana, demandando ainda mais os serviços de
saúde.
Cortar na saúde tão pouco parece ser uma medida
com evidências consolidadas de que tenha contribuído para a recuperação
econômica. Pelo contrário, várias análises defendem que os países que a
adotaram, retardaram sua recuperação. A partir da avaliação das respostas
praticadas por países europeus pós crise de 2008, revela-se que aqueles que
praticaram a combinação de cortes no orçamento da Saúde, com fechamento de
serviços, redução de salários dos trabalhadores, aumento de cobrança total ou
co-pagamento de exames e medicamentos, restrição ao atendimento aos imigrantes
e população de rua registraram pioras nos indicadores de saúde e não
apresentaram recuperação econômica. Ou seja, cortes fazem mal para a Saúde e
para a economia.
No caso do Brasil, entendendo a capilaridade da
presença dos profissionais de saúde e dos investimentos do SUS, o peso que tem
o mercado público para mobilizar a atuação de grandes atores privados como a
indústria farmacêutica, de equipamentos em saúde, de serviços para as unidades
de saúde com alta intensidade de mão de obra ( limpeza, administração, alimentação,
segurança, construção civil, etc...) e o papel regulador em uma ampla lista de
atividades econômicas (agronegócio, alimentação, cosméticos, equipamentos,
insumos e planos de saúde) certamente o impacto é semelhante. Estudos já
revelaram que no Brasil a cada R$1,00 investido em Saúde, retorna-se R$ 1,7 em
crescimento do PIB.
Mas a Questão não é só econômica, é política. Por
debaixo do “só gastar o que se arrecada” que embala a PEC do Congelamento, vem
uma esteira de justificativas para o desmonte de políticas sociais, denominadas
“gastos de custeio” por uma vertente de economistas e papagaios da agenda da
austeridade. Esse mantra busca amortecer todo o debate sobre como arrecadar e
de quem arrecadar, fundamental para sustentabilidade de um Direito à Saude
ousado para um país da nossa dimensão. Só com mais justiça tributária, tirando
dos mais ricos, foi possível construir Sistemas Nacionais Públicos de Saúde
mundo afora. E no Brasil não poderá ser diferente.
A outra perna do movimento político trata de
inviabilizar o SUS como alternativa possível para a promoção, prevenção, e
cuidado à saúde, deixando o caminho aberto para todo tipo de plano de saúde.
Nestes 28 anos, o SUS não foi apenas uma política pública que ampliou o acesso
a saúde e impactou em indicadores epidemiológicos como nunca no Brasil, embora
muito ainda precisa ser feito. Mais do que isso, o SUS foi uma plataforma para
a cidadania. Quantos atores políticos não surgiram no Brasil por conta do SUS:
os antigos usuários de manicômios, a saúde do trabalhador, as mulheres e a luta
pelos direitos sexuais e reprodutivos, o movimento LGBT, inicialmente na luta
contra a AIDS, e hoje na luta por uma atenção integral livre de
preconceitos, os trabalhadores rurais na busca por acesso à saúde e defesa do
meio ambiente, a população negra e indígenas apontando o dedo na ferida para
suas vulnerabilidades específicas, as famílias de pessoas com doenças
específicas e das pessoas com deficiências. Surgiram movimentos. Essas se
descobriram como ativistas. Redes e articulações foram sendo criadas a cada
conselho local, a cada conferência, a cada marcha, a cada audiência pública
propiciada pelo SUS. Destruir esta plataforma, catalisadora de cidadão e
cidadãs é essencial para a República sem direitos prosperar.
Sou filho de lutadores pela democracia em meio a
uma ditadura e sua face mais cruel com o período do AI5. Na luta do dia e pela
vida, uma geração inteira resistiu e foi capaz de dar passos decisivos para
transformação democrática do Brasil. Esta experiência, somada aos milhões de
cidadãos que surgiram nas lutas por avanços de Direitos no Brasil, e com o gás
dos movimentos de juventude que protagonizam o enfrentamento ao golpe, nos dá
energia para impedirmos tamanho retrocesso no país.
Para mim, no campo da saúde, nossas tarefas estão
claras. Primeiro precisamos estar perto e sintonizados com todxs esses atores
que o SUS construiu ao longo dos seus 28 anos, porque é daí e não de gabinetes
ou desse Congresso que surgirão as formas de lutarmos pela ampliação do nosso
Direito à Saúde. Segundo, acordar uma proposta imediata de financiamento global
da saúde, envolvendo taxação de grandes heranças, taxação de grandes
circulações financeiras, de atividades nocivas à saúde (bebida, tabaco, acidentes
de trânsito, agrotóxicos, etc) e ampliação do ressarcimento dos planos de saúde
ao sistema público. Terceiro é estar junto de uma frente ampla por uma saída
democrática para crise política (Diretas Já) e que tenha a redução desigualdade
e a nossa inserção soberana no mundo como atores da recuperação econômica. O
SUS não surgiu sozinho. Ele surgiu e se afirmou em um contexto geral de
redemocratização do pais. Direito à Saúde só existe com Democracia. É por isso
que devemos continuar a luta.
*Secretario Municipal de Saúde de São Paulo;
Ministro da Saúde de Dilma e da Coordenação Política de Lula
Fonte: http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FSaude%2FA-Republica-sem-direito-a-saude%2F43%2F37437#.WFAM1_Ki-b4.facebook